Bodycolour – uma técnica perdida
- Bibistriz
- 13 de jul.
- 4 min de leitura

Todos que me conhecem sabem do meu apreço pela aquarela. Apesar de breves contatos com outras mídias — como óleo, acrílico e giz —, meu vínculo com esse material se manteve firme. A possibilidade de trabalhar com lavagens amplas, controlando a água, ou mesmo de forma mais seca, em busca de maior precisão, oferece um leque expressivo que me interessa.
Com o tempo, meu trabalho passou a demandar mais volume e densidade e, por consequência, comecei a utilizar menos água e pincéis cada vez mais finos. Em parte, eu não me sentia plenamente satisfeita com a transparência nem com o uso do branco do papel como fonte de luz. Pelo contrário: passei a desejar que cada superfície fosse inteiramente preenchida pela tinta, o que pode soar contraditório para muitos, já que a aquarela é comumente associada à leveza e à translucidez.
Foi principalmente a partir de estudos que encontrei uma forma de pintar que me satisfazia, mesmo que destoasse da tradição clássica da aquarela: o bodycolour. Em resumo, passei a misturar as cores com a aquarela branca, buscando alisar, opacificar, preencher cada espaço. Por si só, a ideia de incorporar o pigmento branco à aquarela já é considerada um erro técnico; ao ser misturada, a tinta perde o brilho característico e se torna opaca. Ainda assim, a aquarela branca não era suficiente para alcançar o efeito que eu buscava, e foi o guache, mais espesso e encorpado, que se tornou o escolhido. Segui por anos fazendo isso de forma intuitiva, sem saber, de fato, que já se tratava de uma prática consolidada.
O guache, por exemplo, nada mais é que aquarela com pigmento branco adicionado. O termo surgiu na França do século XVIII para designar uma tinta composta por pigmentos diluídos em goma solúvel em água, como a aquarela, mas com a adição de branco para opacificar. Diferencia-se da aquarela tradicional por utilizar maior proporção de aglutinante e, muitas vezes, pigmentos inertes como o giz, que intensificam a opacidade. O resultado é uma camada mais espessa de tinta, que não permite a transparência do papel e se presta, inclusive, à criação de luzes em pinturas aquareladas. Hoje, o termo “guache” costuma ser usado indistintamente para qualquer trabalho em bodycolour — isto é, qualquer pigmento aquoso de aplicação opaca. Essa técnica, utilizada desde o final do século XV, empregava originalmente o branco de chumbo, substituído no século XIX pelo óxido de zinco, conhecido como branco chinês.
O aspecto opaco, por exemplo, acabou por tornar-se um atrativo, dada a aproximação com as cores da realidade. O trabalho se encorpa e adquire características ambíguas. Inúmeras vezes me perguntaram o que eu usava para pintar e, ao descobrirem que era aquarela, mostravam-se surpresos: não era espesso o suficiente para ser óleo, nem apresentava o acabamento plástico e uniforme típico do acrílico, tampouco era liso como o guache (frequentemente associado a uma aplicação mais gráfica), e claramente também não apresentava o aspecto leve e delicado que se espera da aquarela.
E, por mais que pareça uma aplicação estranha, acabou por se tornar um processo indispensável em cada pintura minha. Começo com camadas puras e aguadas de aquarela e, aos poucos, vou encorpando com o branco. Ainda gosto de dissolver o pigmento com bastante água, mas construo em muitas camadas. Como se pode imaginar, esse esbranquiçamento exige ser compensado com novas misturas para reabrir os tons. É um processo muito lento, e eu arriscaria dizer que demanda, em média, o dobro do tempo de uma aplicação tradicional da aquarela. Foi então que comecei a me perguntar: “será que mais alguém já fez, ou ainda faz, isso?” E, por mais que a resposta pareça obviamente afirmativa, durante muito tempo não foi. Não se ouve falar sobre isso.
O bodycolour através do tempo
Albrecht Dürer (1471–1528) talvez seja um dos mais célebres artistas em cujas obras é possível perceber com clareza as características do bodycolour. A intensidade de muitos de seus trabalhos deve-se, inclusive, à técnica empregada. Um de seus trabalhos mais conhecidos, Young Hare (1502), é uma composição feita em aquarela e guache branco, revelando com precisão como a opacidade contribui para a verossimilhança da textura e do volume.

Atentando-se às fichas técnicas de outras obras com o mesmo teor naturalista, é muito comum encontrar o uso de bodycolour. Maria Sibylla Merian (1647–1717), por exemplo, fez amplo uso da técnica em seus estudos botânicos e entomológicos; Pierre-Joseph Redouté (1759–1840), conhecido como “o Rafael das flores”, também recorreu à mistura de guache e aquarela como recurso essencial na representação minuciosa da natureza. Fica evidente, portanto, a importância da técnica para esse tipo de trabalho, em que a precisão, sutileza cromática e densidade visual são indispensáveis.

Entretanto, o uso do bodycolour vai além da aplicação pontual em estudos científicos ou registros de precisão. A técnica aparece já nas iluminuras medievais e ganha novo fôlego na França do século XVIII, especialmente em obras decorativas. Na década de 1830, foi revivida por diversos aquarelistas vitorianos na Inglaterra. Inclusive, em uma postagem anterior, apresentei o artista Edward John Gregory (1850–1909), que também foi adepto da técnica.
Hoje, no entanto — e aqui me baseio em uma percepção pessoal — pouco se fala sobre o uso do bodycolour. A aquarela é amplamente ensinada a partir da lógica de recusar o pigmento branco, reivindicando os brancos do papel como parte essencial do processo. O guache, por sua vez, costuma ser descartado como um material “não profissional”, preso ao imaginário escolar dos potes baratos e pigmentos instáveis. Muitos dos materiais disponíveis, de fato, não possuem a composição necessária para fazer jus à técnica, o que contribui para sua marginalização no campo da pintura contemporânea, já tão reduzido ao espaço único (e incoerente) da ilustração.
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Texto por: Bibistriz (Beatriz Amaro)
Edição: Lorenzo Cuervo
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Referências:
British Museum. Maria Sibylla Merian: pioneering artist of flora and fauna. Disponível em: https://www.britishmuseum.org/collection/animals/maria-sibylla-merian-pioneering-artist-flora-and-fauna
Handprint. Pigment White 7: white pigment guide. Disponível em: https://www.handprint.com/HP/WCL/pigmt7.html
National Portrait Gallery. Glossary of Art Terms – Bodycolour. Disponível em: https://www.npg.org.uk/collections/explore/glossary-of-art-terms/bodycolour
Wikipedia. Young Hare. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Young_Hare
TASCHEN. Redouté – The Book of Flowers. Edição multilíngue. Publicado em: 1 jan. 2020. 1ª ed. 512 p. ISBN-13: 978-3836556651.
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